29 de dezembro de 2009

John Bull's Other Island

"Quando eu digo que sou irlandês, quero dizer que nasci na Irlanda e que minha língua nativa é o inglês Swift, e não o jargão execrável dos jornais londrinos de meados do século XIX. Minha linhagem é a linhagem da maioria dos ingleses: ou seja, não tenho em mim nenhum traço da tensão comercialmente importada do espanhol do norte, que se passa por irlandês aborígine: sou um irlandês típico, genuíno, oriundo das invasões dinamarquesa, normanda, cromwelliana e (claro) escocesa. Sou violenta e arrogantemente protestante por tradição de família; mas o governo inglês pode contar com minha lealdade: sou bastante inglês para ser um republicano e um autonomista inveterado. É verdade que um de meus avós era orangista; mas então sua irmã era abadessa; e seu tio, orgulho-me de dizê-lo, foi enforcado como rebelde. Quando olho ao meu redor e vejo esses cosmopolitas híbridos, envenenados pelo favela ou mimados pela praça, que hoje se autoproclamam ingleses, e os vejo maltratados pela guarnição protestante irlandesa de um modo que nenhum inglês permite sê-lo hoje por um inglês; quando vejo os irlandeses em toda a parte gabando-se de ser perspicazes, sadios, duramente calejados contra os sentimentalismos, suscetabilidades e credulidades pueries que fazem do inglês a presa fácil de qualquer charlatão e o idólatra de qualquer néscio, percebo que a Irlanda é o único lugar na Terra que ainda produz o inglês ideal da história."

SHAW, George Bernard. 1856-1950. John Bull's Other Island (1904). Rev. por Standart Edition, 1947. Perface to politicians: what is an Irishman? Londres: Constable & Company, 1931, p.15-16.

24 de dezembro de 2009

História do Cerco de Lisboa

"Nos seus apontamentos para a carta a Osberno, notou Frei Rogeiro, embora de tal não viesse a fazer menção na redacção definitiva, uma minuciosa descrição da chegada do cavaleiro Henrique ao arraial da Porta de Ferro, incluindo certa alusão, pelos vistos irrefreável, a mulher que com ele vinha, Ouroana de seu nome, formosa como o amanhecer, misteriosa como o nascer da lua, foram expressões do frade, que a prudência disciplinar, por um lado, e o pudor parece que melindroso do destinatário, por outro, aconselharam a expungir. Ora, é bem possível que este e outros recalcados movimentos de alma tenham sido a causa, por via de sublimação, do cuidado com que Frei Rogeiro passou a acompanhar os ditos e feitos do cavaleiro alemão, antes, mas sobretudo depois da sua infeliz morte, mas não desgraçada, como a seu tempo se tornará patente. Em por claro, diremos que não podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites, não encontrou melhor exutório, salvo outro qualquer secreto, que exaltar até à desmedida o homem que se gozava do corpo dela. Da complexidade da alma humana tudo podemos esperar."

SARAMAGO, José, 1922-2010. História do Cerco de Lisboa, Portugal, 1989.