12 de julho de 2012

Diário de um Velho Louco

"Creio que o fenômeno seja comum à maioria dos idosos, mas a verdade é que, nos últimos tempos, nenhum dia se passa sem que eu não pense em minha própria morte. Não só nos últimos tempos, porém, no meu caso. Eu pensava nisso desde muito antes, desde a época em que eu tinha os meus vinte anos, mas a recorrência do pensamento é tão grande, atualmente, que impressiona. 'Pode ser que eu morra hoje', imagino cerca de duas ou três vezes ao dia. A ideia não vem necessariamente acompanhada de medo. Na minha juventude, vinha associada a uma intensa sensação de pavor. Agora, porém, chega a me proporcionar certo prazer. Em compensação, fico imaginando pormenorizadamente as cenas que se seguirão à minha morte. O velório, por exemplo, não será realizado no cemitério Aoyama: o caixão deverá ser depositado naquele aposento de dez tatami voltado para o jardim. O arranjo provar-se-á prático, pois as pessoas poderão entrar pela porta dos fundos, passar pela casinha de chá e pelo portãozinho que se abre para ela e, pisando as lajes que formam uma trilha no jardim, alcançando o aposento e ali queimar incensos. Que não me toquem as estridentes flautas e flajolés do cerimonial xintoísta".

TANIZAKI, Junichiro, 1886-1965. Diário de um Velho Louco (Futen Rijin Nikki), Japão, 1962.

14 de junho de 2012

Naomi

"Mas essa é a questão. Não conseguia entender por que Antônio se apaixonara por uma mulher tão sem coração. E não era apenas Antônio; antes dele, o grande Júlio César se arruinara envolvendo-se com Cleópatra. Há muitos outros exemplos. Quando se examina as grandes brigas de família do período Tokugawa, ou a ascensão e queda dos estados, sempre se encontra, sempre, as manhas de uma terrível sedutora, por trás de tudo. Ora, será que essas manhas são articuladas de maneira tão engenhosa, tão astuta, que qualquer um se deixaria levar por elas? Acho que não. Por mais ardilosa que fosse Cleópatra, é pouco provável que seus expedientes fossem mais férteis que os de César ou Antônio. Quando um homem está alerta, não precisa ser um herói para perceber se uma mulher é sincera e se está dizendo a verdade. Um homem que se deixa iludir, mesmo quando sabe que está destruindo a si mesmo, é apenas demasiado pusilânime. Se este foi, realmente, o caso de Antônio, então não há nada tão maravilhoso nos heróis... Esses eram meus pensamentos secretos, na ocasião, e aceitei o julgamento do meu professor, de que Marco Antônio era 'o alvo de riso dos séculos', 'o maior tolo da história'."

TANIZAKI, Junichiro, 1886-1965. Naomi (Chinjin no Ai), Japão, 1924.

15 de abril de 2012

Noite Insone

"E nas noites insones leio, escrevo, penso, volto a ler, escrevo mais um pouco, e então busco o deleite de encostar a cabeça no travesseiro para repousar - mas não acontece. Desejo que Hipnos venha e embale meu pensamento e o deixe dócil, pequeno, envolto em nuvens etéreas - mas ele não aparece. Ao contrário, tenho um coração que não pára e uma ânsia de absoluto que fica ao meu lado sugerindo planos para o próximo dia. Sou um atleta do devir. Especialista em fazer de noites inteiras um laboratório onde multiplico tormentos e pensamentos ruins, e com uma sensação absurda de estar enlouquecendo, de paulatinamente entrar em um mundo onde as horas passam como milênios, onde os homens não dormem nunca e onde palavras como dia e noite, luz e trevas representam significados mortos, conceitos dos quais ninguém mais se lembra, resquícios empoeirados de um passado sem retorno."

RAMOS, Leandro Márcio. Tudo Que é Grande Se Constrói Sobre Mágoa, conto "Noite Insone", Brasil, 2011.

28 de março de 2012

Profunda Base Histórica (Que País É Este?)

"No princípio, vocês se lembram dos estudos de História do Brasil, era aquele negócio das especiarias. Ainda não existíamos mas os navios lusitanos já cortavam os mares no caminho do Oriente, em direção às Índias, em busca de noz de cola, noz vômica, noz moscada. Numa dessas idas e vindas aconteceu aquela das calmarias – é o que eles contam – e fomos descobertos. Por acaso. Tropeçaram em nós.
Descobertos por povo marítimo e povo marítimo nós mesmos (sempre tivemos as costas largas), era natural que a medida marítima, o náutico, nos fosse tão importante. Como, daí em diante, foram importantíssimos para nós os nós da madeira do pau-brasil que exportávamos com um na garganta (sabendo já que exportávamos ecologia), ameaçados pelo da forca portuguesa.
E fomos nos civilizando: nossos índios aprenderam a dar no sapato e na gravata e quando sentiam nas tripas já não se tratavam com os nós das cobras. Ficaram supersticiosos, batendo com os nós dos dedos (toc! toc!), e, catequizados pelos padres, acabaram aderindo ao matrimonial católico.
Tinha que dar nisso – somos, hoje, um povo cheio de nós pelas costas. Desafiados pelo do enredo, o da questão, nossos líderes acabaram transformando o corredio num cego que ninguém desata. E, agora, esperamos em vão nosso Alexandre, aquele que terá coragem bastante de meter a espada nesse górdio.
O resultado? Uma incrível corrupção, um tremendo “venha a nós”. Quem paga por tudo isso? Nós outros.
Tem razão o slogan: é um país feito por nós."

FERNANDES, Millôr. 1923-2012. Que País É Este? São Paulo: Círculo do Livro SA, 1978, p. 12.

Nota: este post é uma homenagem ao autor. Descanse em paz, Millôr Fernandes - suas crônicas me ajudaram a entender melhor meu próprio povo.

14 de fevereiro de 2012

Triunfo das nulidades

"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."

BARBOSA, Rui. 1849-1923. Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: 1914, DFV. 41, t. 3, 1914. p. 86.