13 de outubro de 2014

A História de Portugal

"Com a restauração das letras gregas e romanas, nos fins do seculo XV, o mundo antigo renasceu para uma vida em parte ficticia, em parte real. Ao passo que as tradições da jurisprudencia romana triumphavam emfim plenamente nas instituições politicas e civis das nações modernas, a republica ideal das letras organisava-se pelas condições de uma litteratura, cujos monumentos mais preciosos subsistiam ainda, mas cuja indole e espirito eram, até certo ponto, letra morta, porque não se podiam casar nem com os costumes, nem com as crenças da Europa moderna. O enthusiasmo pelos brilhantes vestigios de uma civilisação que passára, não tinha força para a fazer admirar e receber pelo commum dos homens, porque entre ella e o modo de existir destes havia insuperaveis antinomias. A idealidade christan, repellida do meio das classes illustradas, acolhia-se entre o vulgo; as formulas litterarias nascidas com a idade média, e que até ahi haviam acompanhado no seu desenvolvimento natural o  progresso da nova sociedade, viam-se condemnadas pelo desdem da aristocracia da intelligencia. Á historia, como a tudo o mais, chegou um periodo de transformação. As antigas chronicas portuguesas, como as de todas as outras nações da Europa, seguiam um methodo e estylo de narrar totalmente diverso dos livros historicos dos romanos e gregos: eram mais singelas e pinturescas; representavam-nos melhor a vida domestica: os caractéres dos personagens eminentes não no-los faziam comprehender com os traços rapidos e profundos que bastavam aos historiadores romanos, e de que as paginas de Tacito são o mais perfeito modelo; mas em compensação legavam-nos ingenuamente os dictos e feitos desses individuos, e habilitavam assim a posteridade a concluir das scenas altamente dramaticas, que registavam, uma synthese talvez menos profunda, mas de certo não menos verdadeira. Mais inhabeis que os historiadores antigos em assignalarem a relação dos acontecimentos com as suas causas e effeitos, e a attribuir a cada successo a sua importancia politica; reduzindo, como elles, a historia a uma arte sem objecto fóra de si, em vez de a considerarem como sciencia social destinada a enriquecer o futuro com a experiencia do passado, sabiam todavia aproveitar melhor certos toques que tornam mais faceis de imaginar, permitta-se-nos a expressão, as linhas, contornos e cores das epochas. Se, emfim, as narrações dos chronistas eram por uma parte triviaes, e até baixas, pelo habito que elles tinham de particularisar circumstancias minimas, faziam-nos por outra parte perceber mais claramente a indole real dos individuos ou da geração de que tractavam, ao passo que os historiadores antigos só nos apresentam os homens com os gestos e meneios convencionaes e estudados do foro, do senado, do templo, da solemnidade publica. O chronista da idade média, para nos pôr diante dos olhos os grandes vultos que passaram na terra, alevanta dos tumulos os seus cadaveres, e infunde-lhes de novo a vida', ao passo que o escriptor grego ou romano apêa dos pedestaes as estatuas dos homens publicos, correctas, porém frias e mortas, e como a estatua no banquete de D. João Tenorio, fa-las caminhar ante nós com um gesto solemne, mas inflexivel e pesado."

HERCULANO, Alexandre; 1810-1877. A História de Portugal. Tomo I, 2a edição. Lisboa, 1846.

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